VIAGEM DE VENTANIA

“A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si. De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho. Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.” (p. 207)

Para nos sentirmos seguros, queremos prever as ações do outro. O outro é estranho, portanto, provoca-nos incertezas, dúvidas, medo. Era assim que Ana, personagem de Clarice Lispector, encarava a vida. Os seus dias eram todos iguais. Sem surpresas. Sem sobressaltos. Conseqüentemente, sem paixão.

Ana teve o seu momento de lucidez: por um instante, deparou-se com o desconhecido. Sentiu que dentro dela ainda havia espaço para o despertar. A propósito, quem é o forte que consegue controlar a sua sombra por muito tempo? Quem é o forte que lidera o mundo ao seu redor? Seremos sempre inúteis na tentativa de adivinhar a vida.

Seria bom dizer: não sejamos seres despedaçados. Mas, na verdade, já somos. Totalmente despedaçados. Mesmo que não acreditemos nisso. O jardim é tão bonito! Será que é por isso que temos medo do inferno? Perguntemos ao mundo sombrio de Ana. “Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas”…

E quando faremos parte das raízes negras e suaves do mundo? Sabemos, apenas, que cada um adormece dentro de si.

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LISPECTOR, Clarice. Trecho do conto “Amor”. In: ___ Os melhores contos de Clarice Lispector. (Seleção Walnice Nogueira Galvão). São Paulo: Global Editora, 1996.

4 Replies to “VIAGEM DE VENTANIA”

  1. Aline, vc tem surpreendido esses últimos meses, cada vez mais sensível, perspicaz, ao escrever vc tem mexido com os sentidos de quem vem aq. Ah, sim, sempre “Seremos sempre inúteis na tentativa de adivinhar a vida”. Perfeito. bjs

    Helen, deve ser porque estou numa fase muito boa de minha vida 😛 As coisas parecem fluir melhor… Ou então é porque tou ficando velha mesmo… A gente vai ficando mais sábia ahahaha Seja lá o que for, agradeço pelos elogios e pela visita. beijos, Aline

  2. Viver é muito comprido. Despertar é sempre um sobressalto. Adormecer é exilar a brisa da vida. Juntar seus próprios pedaços e descobrir o quanto foi estilhaçado pelas cicunstâncias… Que a vida seja como um relâmpago na noite escura: brilhante… e breve.

    Que lindo, Edison: “que a vida seja como um relâmpago na noite escura: brilhante e breve”. Tenho sorte de ser visitada por pessoas como você. Com carinho, Aline

  3. Acho que o primeiro passo dado de cabeça pensada nessa vida deveria ser a decisão de não saber, o mergulho no escuro, em todas as infinitas possibilidades. A lucidez está em abrir os olhos para o desconhecido!

    Pois é, Digo. O mergulho no escuro é uma boa metáfora para nossa reflexão. beijos, Nina

  4. Normalmente, nem nossos atos podemos prever, quem dirá os atos da vida? 🙂
    Será que se conseguirmos entender que ser despedaçado é inevitável, conseguiremos achar nossos pedaços belos e necessários?
    Acredito que sim.
    Beijos!

    É possível, Rebeca… beijos, Aline

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