Um intelectual em mangas de camisa (por Aline Menezes)

Um intelectual em mangas de camisa
(Aline Menezes)

Na segunda metade do século XIX, Tobias Barreto de Menezes (1839-1889) já defendia ideais progressistas, a exemplo da emancipação feminina e da abolição da escravatura. Em um de seus discursos como deputado durante sessão na Assembleia de Pernambuco, em 22 de março de 1879, ele entrou num debate sobre a educação da mulher com deputados conservadores e para quem o poeta, filósofo, escritor, crítico e jurista sergipano apresentava seu pensamento ou conhecimento histórico, filosófico, jurídico e literário. Integrante da Escola do Recife, ele afirmou que uma das “errôneas opiniões consagradas” era a ideia de que “a mulher não tem talento para a cultura científica”.

Em 2007, na 26ª edição da Feira do Livro de Brasília, comprei de uma livraria de obras raras os “Estudos de Sociologia”, de Tobias Barreto, editado pelo Instituto Nacional do Livro em 1962. É bem possível que Tobias tenha sido o primeiro intelectual brasileiro de que eu tive notícia na infância. Sim, na infância. Isso porque em nossa cidade, cujo nome é em homenagem ao nosso mais importante conterrâneo, as escolas nos ensinavam desde cedo sobre a sua vida e obra. Nesse livro, por exemplo, constam os próprios discursos “Educação da mulher” e “Ainda a educação da mulher”, segundo os quais o orador diz (preservarei a grafia da época):

“Sr. Presidente, a questão que aqui hoje nos ocupa, a questão de saber se a mulher pode estudar e exercer a medicina, já não é uma tal, já não tem caráter problemático para o alto mundo científico. Pode-se até fazer-lhe a história e enumerar os seus momentos diversos. Foi em dezembro do ano de 1867, que na Europa se deu o primeiro impulso para um dos maiores movimentos dos tempos modernos, sendo conferido a uma mulher, em ato solene o grau de doutôra em medicina por uma universidade célebre, a universidade de Zürich. Essa mulher é uma russa e seu nome Nadeschda Suslowa. Foi esta, sim, a primeira vez que se resolveu ali pràticamente e de modo satisfatório o problema inquietante dos estudos universitários da mulher, em comum com estudantes do sexo masculino. Até então não se tinha suscitado dúvida séria sobre a competência, ou incompetência dela, para as funções especiais de médico”.

A discussão parlamentar daquela ocasião dava-se em razão de Tobias Barreto entrar em defesa de requerimento da jovem Josefa Augusta Felisberta Mercedes de Oliveira, que pleiteava um auxílio financeiro do Governo da Província de Pernambuco para que ela pudesse estudar medicina no estrangeiro (Estados Unidos ou Suíça). O médico com quem o intelectual sergipano travou seu melhor debate foi Malaquias Gonçalves da Rocha, que era contrário à petição, alegando haver respaldo científico que justificasse a inferioridade feminina, desqualificando a mulher para atividades científicas, além de o doutor acrescentar que a missão da mulher é ser mãe.

“Dá licença que eu refute êste princípio com um outro, não menos vulgar: sim, a missão da mulher é ser mãe, da mesma forma que a missão do homem é ser pai… […] Ora, em que é que a missão de ser pai tem privado o homem de se dedicar à ciência? Do mesmo modo que, pois, a mulher pode ser mãe, muito boa mãe, e todavia cultivar perfeita e profundamente a ciência”, afirmou o intelectual sergipano, que já havia refutado o argumento da fisiologia aventado por dr. Malaquias. Ao final das sessões, o requerimento foi aprovado, tendo outros desdobramentos positivos para a educação da mulher, como o projeto de Tobias que previa a criação de uma escola de ensino superior para moças.

Se hoje, no século XXI, ainda precisamos afirmar que vidas negras importam, que a vida das mulheres importa, não é porque não concordamos que bastava sabermos que todas as vidas importam, mas é porque, assim como no século XIX, de características marcadamente provincianas, havia aqueles cuja mentalidade não dava conta de apreender um mundo onde homens e mulheres, por exemplo, pudessem partilhar das mesmas oportunidades, dos mesmos acessos, e somente cada um pudesse decidir o que fazer com suas próprias vidas, e não que decidissem por nós quem merece mais ou quem importa mais que o outro.

Foto: Acervo pessoal

Para me juntar às homenagens que justificam o feriado municipal deste domingo (7/6), em Tobias Barreto, data de aniversário do escritor homônimo, encerro com suas outras palavras com as quais eu também compartilho: “Não falo da classe econômica pròpriamente dita, porque a sua vida se limita a uma luta pelo capital, e nada tem a ver com as nossas lutas pelo direito. Após então vem o povo, o povo triste e sofredor, em cuja fronte, não poucas vêzes, junto ao estigma da infelicidade, por cúmulo de miséria, a sorte imprime também o estigma da ingratidão; o povo que é o número, mas um número abstrato, um número não é fôrça; — perseguido, humilhado, abatido, a ponto de sôbre êle os grandes disputarem e lançarem os dados, para ver quem o possui, como os judeus sortearam a túnica inconsútil do mártir do Calvário”.
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BARRETO, Tobias. Estudos de Sociologia. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962, p. 65, 66, 93, 94 e 109.

P.S.: Em 7 de junho de 2016, a Editora Oficial do Estado de Sergipe (Edise) lançou a coleção das “Obras Completas de Tobias Barreto”, editada pelo jornalista e historiador Luiz Antônio Barreto (in memoriam).

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