A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele… (Hannah Arendt)
Vamos celebrar a nossa estupidez
por Aline Menezes
Na ausência de bons argumentos, de raciocínios que realmente sejam fruto de reflexões aprofundadas sobre os fatos e que não sejam reproduções falsificadas do senso comum, parece natural que uma das primeiras manifestações das pessoas – quando estão diante de debates “polêmicos” – seja a tentativa de desqualificar ou desvalorizar lutas legítimas como, por exemplo, a dos movimentos negros, feministas e LGBT.
Frases do tipo “racismo está nos olhos de quem vê” ou “você vê machismo em tudo” ou “prefiro uma criança vestida de militar a uma criança marginal” refletem tão bem o modo rasteiro e tacanho de como assuntos importantes são tratados nas redes sociais e de como as pessoas têm dificuldades para evoluir no debate ou não conseguem abandonar os vícios do pensamento estreito, imaturo e fácil.
E mais: refletem o grau de insensibilidade utilizado para negar o que, para mim, é incontestável: a existência de várias formas de violência e preconceito contra milhões de pessoas em todo o mundo, sejam negros, mulheres, gays, lésbicas, transexuais ou quaisquer grupos que não correspondam às expectativas do “mundo padrão” (heteronormativo) e que possuam comportamentos e discursos que contrariem os mecanismos de dominação, tão presentes em nossa vida cotidiana.
Às vezes, reconheço que perspectiva tão rasa da nossa realidade não seja sempre falta de inteligência, até porque deve ser difícil o acesso a condições que nos possibilitem ampliar nossa visão de mundo; às vezes, entendo que seja questão de mau-caratismo mesmo, até porque existem seres completamente perversos entre nós; às vezes, compreendo que parte dessas pessoas é ingênua e vive num mundo “cor de rosa”, onde tudo está muito bem ajustado. Por exemplo: “racismo não existe”, “machismo é criação de mulher mal amada” e “corrupção é um problema do governo”…
Quando falamos sobre violência contra mulher, querem nos silenciar sob o argumento de que homens também sofrem violência todos os dias, como se essa fosse a resposta de que precisamos para resolver o nosso problema de sermos violentadas ou assassinadas em nossas casas, em nossas universidades, nas esquinas de nossas ruas ou nos guetos… pelos nossos ex-maridos, ex-namorados, companheiros, vizinhos, familiares, padrastos…
Quando discutimos acerca do racismo ou preconceito racial, querem nos dizer que brancos também sofrem discriminações, como se homens e meninos de pele clara fossem diariamente alvejados pela polícia, porque foram “insistentemente confundidos” com o “bandido” lá do armazém do seu Rodolfo. Como se homens e meninos de pele clara fossem amarrados e acorrentados em praça pública porque causaram suspeitas… Não, homens e meninos de pele clara não levantam suspeitas…
Quando falamos sobre homofobia, querem nos levar a pensar que estamos em uma sociedade “heterofóbica”… como se eu – mulher – precisasse passar a minha vida toda ensaiando o momento no qual eu precisasse “assumir” que sou heterossexual: “Pai, tenho atração por homens”. E, com isso, a minha mãe me expulsasse de casa. Eu poderia rir de tudo isso, já que a “lógica” é tão tola, tão pueril, se eu não achasse tudo tão grave, tudo tão estranho, tudo tão estúpido…
A maldade desses argumentos está no que eles são capazes de reforçar ainda mais na sociedade e manter o que já é absolutamente intolerável: a brutalidade e a violência diária e específica contra negros, mulheres, gays, lésbicas e transexuais; a brutalidade e a violência cada vez mais naturalizadas em razão de discursos insensíveis e imbecis, forjados sob uma perspectiva igualmente violenta; a brutalidade e a violência reconhecidas e assumidas como “não brutalidade” e “não violência”.
Assim, o convite-ironia da Legião Urbana na canção “Perfeição” ainda está de pé e pode ser feito por todos nós: “Vamos celebrar a estupidez humana / A estupidez de todas as nações / O meu país e sua corja de assassinos / Covardes, estupradores e ladrões / […] Vamos comemorar como idiotas / A cada fevereiro e feriado / […] vamos festejar […] a intolerância e a incompreensão / Vamos celebrar a violência… / […] e [também] a nossa [violenta e insana] solidão”.