Pedagogia da compreensão (por Marcos Fabrício)

Pedagogia da compreensão
(por Marcos Fabrício Lopes da Silva*)

Ensinar é bom para quem ensina e bom para quem aprende. O primeiro se satisfaz nos desejos de ajudar; o segundo supre suas necessidades de crescimento. Dito dessa forma, parece tudo muito bom e até desejável. Há, no entanto, uma atitude estranha e impertinente embutida na tarefa meritória de ensinar. Há quem não perca um momento sequer para ensinar alguma coisa que acha útil para o outro ou, mesmo, que imagina faltar-lhe no seu acervo de aprendizagens, muitas vezes, já saturado de ensinamentos. “Tentar encontrar a Grande Resposta para o problema da vida é como comer a Grande Refeição, para nunca mais se ter de preocupar com a fome”, alertou, certa vez, o rabino estadunidense Harold S. Kushner. Ensinar não é mau; ruim é ensinar como quem invade o outro, sem antes criar as condições necessárias e humanas para que o aprendiz reconheça o valor do ensinamento proposto. Na realidade, só aprendemos aquilo a que atribuímos valor.

Em nome das “aprendizagens úteis”, refugamos o que flui naturalmente como uma forma de viver. Perdemos a espontaneidade das expressões de dúvida, de admiração, de alegria e de tristeza porque precisamos aproveitar todos os momentos para aprender alguma coisa proveitosa. Como se o encontro com os sentimentos e as emoções não fossem fontes riquíssimas de aprendizagens, sem a pressão de uma pedagogia ansiosa. É verdade que, queiramos ou não, passamos boa parte da vida ensinando e aprendendo. Talvez mais ensinando do que aprendendo. Só que ensinar, para o seu próprio sucesso, não precisa vir acompanhado de aspereza, nem ungido com gotas de ironia, sarcasmo e julgamentos impiedosos.

Nenhum ensinamento que venha sem os nutrientes do respeito e da ternura perdurará nos seus efeitos. A eficácia do que se ensina mede-se não pela demonstração imediata do que se ensinou, mas pelos resultados nas modificações de atitudes e ações que provocou. Se alguém se dispõe a ensinar, precisa, primeiro, dispor-se a olhar o outro como verdadeiro outro e não tomá-lo como uma projeção de si que precise ser corrigido, modificado, treinado até que se pareça com o “mestre”. A função de quem ensina não é construir semelhantes, mas auxiliar aos demais na conquista de formas de viver e conviver confortavelmente consigo e com os outros. Tal dinâmica muito bem se encontra na música Gaiolas abertas (1982), composta por João Donato e Martinho da Vila: “Voa,/Voa passarinha voa/A gaiola está aberta/Tu não estais presa mais/Voa,/Bate asas e vai embora/Mas há perigos lá fora/Visgos e pedras mortais/Voa, pra ser livre valem os riscos/Voa,/Foge lá pros altos picos/Canta/Pra chamar o companheiro/Que está voando fagueiro/Entre frutas tropicais”.

No que diz respeito à convivência, dificilmente ensinaremos a muitos de uma só vez, mas sim a cada um durante muitas vezes. Por paradoxal que seja, na convivência sobressai a individualidade. Compreender, entretanto, não significa decifrar os enigmas da personalidade alheia, o que pouco ou nada adiantaria para nossos intentos educativos. Compreender passa muito mais pelo caminho do acolhimento e da percepção da trajetória individual do que da modelagem segundo um padrão preestabelecido. É algo parecido com o que o artesão faz com os galhos, muitas vezes, ressequidos da árvore que, dada como morta, transforma-se na arte viva daquele que compreendeu, amou e, por isso, devolveu a vida ao que parecia morto.

Falta-nos meiguice no trato com a diversidade do indivíduo humano. Ensinar e corrigir não é impor ao outro uma cirurgia plástica no seu comportamento para que ele se assemelhe ao modelo de beleza que idealizamos para a sua conduta. Ensinar sem amor é como tentar uma cirurgia sem os necessários anestésicos. Poderá até curar, mas a um preço de sofrimentos desanimadores. Há casos em que muitos preferem permanecer no sofrimento a conquistar uma cura despersonalizante. Ensinar verdadeiramente é ajudar a construir estruturas sobre as quais cada um erga a sua própria moradia. Emmanuel Lévinas (1906-1995) soube dizê-lo de uma forma simples e enfática: “o sapateiro faz os calçados sem perguntar a seu cliente aonde ele vai” (Entre nós: ensaios sobre a alteridade, 1951-1988). Sem dúvida, ensinar exige perseverança fundamentada na paciência sem nunca perder a esperança, o que abre um momento de reflexão sobre “atitudes pedagógicas” cheias de irritação pelo fato de o outro não “aprender” do jeito como queríamos. Ensinar não é enquadrar o outro no modelo que preestabelecemos.

Muitas vezes, temos dificuldade de entender e aceitar que os nossos modelos não são os únicos referenciais adequados. Talvez por essa estreiteza de visão pedagógica é que percorremos um caminho contaminado pela ansiedade e até mesmo por um sentimento de raiva por não conseguirmos a mudança desejável. Como decorrência desse posicionamento, sem o perceber, adotamos a prática da repetição das mesmas coisas com os mesmos conteúdos e formas. Desse modo, ensinar passa a ser mais uma recriminação e um desabafo do que uma nova tentativa de sensibilizar o aprendiz. Ouvir é condição básica e indispensável para podermos falar com propriedade e eficiência. Afinal de contas, somos seres falantes porque, antes, somos seres ouvintes. Na realidade, quem ouve enxerga o que os olhos não podem ver. É muito mais grave deixar de ouvir do que deixar de falar. Humberto Maturana nos ajuda a entender o intricado mundo das relações quando diz que “o ser ou a identidade da pessoa não é uma propriedade fixa, mas um modo relacional de viver que se conserva no conviver” (Formação humana e capacitação, 2000). Isso pressupõe uma forma pacífica e amorosa de convivência. Não se trata, porém, de uma aprendizagem baseada apenas na cognição, isto é, no uso da racionalidade. As aprendizagens necessárias à boa convivência pedem uma forma e um caminho afetivo, principalmente na manifestação do amor ao outro.

Foto: “Tolu Bamwo” (nappy.co)
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* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.

[Texto publicado originalmente pelo próprio autor, no dia 8 de janeiro de 2020, em sua página no Facebook.]

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