O cão sem plumas (por João Cabral de Melo Neto)

[Aline Menezes] || A existência é também desespero. Sobreviver diante da brutalidade do mundo, da estupidez de certas concepções de vida, da cauterização do pensamento e do modo como tentam diariamente nos bestializar, parece-me milagre. Logo, para não enlouquecer de verdade, interpreto a literatura como a liberdade que não encontro no dia a dia, como a única possibilidade de ser livre num solo tão árido, num chão de experiências tão violentas e injustas. Trata-se de um acesso solitário a fim de não me tornar insípida e indiferente à experiência humana, partilhar da luta contra o massacre da dignidade de quem está à margem, por exemplo. || Esse foi meu parágrafo introdutório com o qual abri a seção de agradecimentos na minha dissertação de mestrado em Literatura e Práticas Sociais, intitulada “Tensões, aridez e realidade no romance O Cabeleira, de Franklin Távora”, defendida em 2012 na UnB. Ao lembrar da dureza da experiência humana, do sertão de Távora, também penso agora em “O cão sem plumas” (1950), de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta pernambucano que hoje faria 100 anos de idade. Para celebrar seu centenário, deixo com vocês trechos do poema, acessível na versão completa, conforme hiperlink acima.

O cão sem plumas
(João Cabral de Melo Neto)

[…]
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

[…]
Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
[…]

Fonte: Poesia.Net.

Foto: Reprodução (Carlos Wrede | Agência O Globo/ 03-09-1990)

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