keepsakes

[…] um dia empurrando o outro, uma primavera após um inverno e um outono depois de um verão, tudo deslizou pouco a pouco, pedacinho por pedacinho; foi embora, partiu, desceu, quero dizer, pois sempre resta alguma coisa no fundo, assim como… um peso, aqui, no peito! (Sr. Rouault a Charles, Madame Bovary, p. 33)

Às vezes, nem acredito que aquela dor insuportável não existe mais. E não foi o tempo o melhor remédio, foi o esforço, foi a disciplina, foi a determinação, foi a fé.  Sinto-me curada. O que me move agora são outras certezas, outros tipos de beleza, outra percepção da vida. Sei que nunca mais voltarei para aquele caminho tão mentiroso, tão cheio de ilusões. Morri um pouco para acordar e perceber o que realmente importa.

Ah, como desejei um dispositivo que me apagasse as lembranças! Ah, como quis ter amnésia! Hoje apenas agradeço que nada disso era possível. Bom mesmo é conviver com esta sensação de que algo em mim mudou, exatamente porque as experiências deixaram marcas. Tão profundas, tão tristes, tão dolorosas. Precisei enterrar algumas coisas. E o fiz pela certeza de que valeria a pena.

… e somente agora me vem à mente a anatomia de uma dor.

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FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução, apresentação e notas de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.

One Reply to “keepsakes”

  1. Acredita que até hoje ainda não li Madame Bovary? Que vergonha.
    Como diria o Edson Marques no poema “Mude”: Só o que está morto não muda!
    Toda mudança é desconfortável, exatamente porque ela exige esforço, e para que tenha sucesso, ela exige disciplina. Por isso as pessoas não mudam, elas preferem ficar na zona de conforto, que muitas vezes é doentia.
    Parabéns, minha amiga, por essa mudança e superação. Ninguém mais que você merece a certeza de que há uma estação após a outra, mas que aproveitá-las é uma decisão nossa. E toda decisão exige uma ação para se concretizar.
    Infeliz ou felizmente não temos o dispositivo divino de lançar as más lembranças no fundo do mar, mas possuímos o dom divino da superação e livre arbítrio.
    Fico feliz com a sua felicidade!
    Beijos!

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