Educação cultural e xenofobia (por Aline Menezes)

Há alguns anos, durante minha pesquisa do mestrado, que resultou numa dissertação sobre a relação entre o escritor cearense Franklin Távora (1842-1888) e o sistema literário brasileiro, defendida em 2012 na Universidade de Brasília (UnB), compreendi um pouco mais algumas das contradições e dos dilemas sociais que historicamente enfrentamos no Brasil. Entendi, sobretudo, o lugar de marginalização e descaso imputado a uma das cinco grandes regiões do nosso país, que reúne o maior número de estados, o Nordeste, e da qual orgulhosamente me origino. Uso aqui o advérbio “orgulhosamente” sem sentimentos ufanistas, mas para demarcar uma afronta a quem acha que deveríamos nos envergonhar de nossas raízes. Justifico-me desse modo porque gosto de me reconhecer como cidadã do mundo, numa geografia mais expansiva e libertadora, que me dá o direito de transitar imaginariamente por todos os espaços possíveis, sem que para isso eu precise de autorização dos donos da geografia nacional.

Minhas irmãs mais novas e algumas amigas mais íntimas sabem que tenho antipatia a realities shows, tanto que riram de mim quando me viram comentando seriamente o Big Brother Brasil 21. Para elas, eu estava muito divertida na condição de telespectadora. Mas o fato é que, num determinado dia deste ano, observei que os coletivos feministas e antirracistas que acompanho pelas redes sociais estavam falando sobre o BBB 21. Eram várias polêmicas, uma das quais envolvendo uma jovem paraibana, nascida em Campina Grande, chamada Juliette Freire, agora vencedora da edição. Imediatamente, após me inteirar do assunto e ver uma ou outra imagem naquele dia, notei elementos xenofóbicos no programa, mas que não ganharam tanto destaque nos debates.

Como quase todos já sabem, Juliette é advogada, formada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tendo apresentado como trabalho de conclusão de curso a produção acadêmica “William Shakespeare e o Direito: a interpretação legal na obra ‘Medida por Medida'” (2017). Ela também havia estudado alguns anos no curso de Letras e sido aprovada em Medicina. Antes de entrar no BBB 21, trabalhava como maquiadora e estudava para concursos públicos, com intenção de tornar-se delegada de polícia. Hoje, porém, está milionária; com isso, penso que ela já tenha dispensado a carreira jurídica no serviço público. Na casa comandada por Tiago Leifert, Juliette precisava esforçar-se muito para ser respeitada em sua humanidade. As risadas contra o seu sotaque, os ares de superioridade machista de alguns participantes diante do modo de expressar-se de Juliette, para ficarmos nesses dois exemplos apenas, eram inacreditáveis. A todo instante, Juliette precisava provar de alguma forma que ela não era uma coitada ou uma pessoa tola, abobada, unicamente divertida. Mas alguém para quem todos os participantes deveriam olhar de igual para igual, sem rebaixamentos travestidos de incompatibilidades de convivência.

A educação cultural de Juliette, que fazia questão de expressar o seu conhecimento sobre a história e a culinária nordestina, assim como sobre a música produzida por cantores/as e compositores/as nordestinos/as, de certa forma, expôs a ignorância e a arrogância do Sul e do Sudeste do País em relação ao Nordeste. Alguns dos representantes da regiões “civilizadas” do Brasil, como o cantor Fiuk, a youtuber Viih Tube e a rapper Karol Conká, por exemplo, manifestaram comportamentos completamente preconceituosos e xenofóbicos contra Juliette. Outros participantes também expressaram falas bastante problemáticas ao se referirem a Juliette, chegando a se admirarem do fato de ela, pasmem, ser inteligente e ter talento musical e tantas outras habilidades. No imaginário dessa parte “civilizada” do Brasil, todo nordestino é desdentado, analfabeto e estúpido. Sequer perguntam-se por que será que há tantos nordestinos desdentados e analfabetos! Ignorantes que são das realidades brasileiras, alienam-se na ideia de que São Paulo, por exemplo, é o centro do mundo ou que Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná expressam civilidade inconteste.

Lembro-me agora de uma colega gaúcha que não sabia o que era metáfora. Estávamos num táxi a caminho de um evento. Ninguém dentro do carro a julgou estúpida por não saber algo tão básico da língua portuguesa para quem teve formação universitária. Sendo do Sul, ela está autorizada a ser ignorante sem parecer ignorante. Mas quando Juliette não compreendia algo dentro do programa, atribuía-se à suposta ignorância do povo nordestino a sua incompreensão. Não qualifico as pessoas pelo modo como falam, muito menos coloco sotaques em disputa, como se houvesse sotaques certos e sotaques errados. Isso é de uma ignorância linguística sem tamanho. Somente esse assunto já renderia outro texto.

Também não me venham dizer que estou praticando xenofobia reversa, ao exemplificar um episódio relacionado a uma colega dos pampas. Meu desassossego parte da constatação de que o Brasil, de dimensões continentais, como se costuma pontuar em diversos textos e se pode provar pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é diverso de muitos modos, e o Norte e Nordeste brasileiros são sempre vistos de cima para baixo, sobretudo pelos sulistas e sudestinos, como se nossos índices de analfabetismo e desigualdades sociais, por exemplo, não representassem o fracasso de uma nação inteira. Ou como se a música, a culinária, a literatura, a dança, as artes visuais produzidas em Alagoas, na Bahia, no Ceará, no Maranhão, na Paraíba, em Pernambuco, no Piauí, no Rio Grande do Norte ou em Sergipe não fossem manifestações culturais do Brasil, mas tão somente regionais. Como muito bem me disse meu amigo, o escritor e poeta Marcos Fabrício Lopes da Silva, é curioso como a arte produzida em São Paulo ou no Rio de Janeiro logo recebe status de arte nacional, mas nunca regional.

Particularmente, não sinto tesão por gente preconceituosa, machista, homofóbica, racista ou xenófoba, mesmo sabendo que não estou imune a reproduzir comportamentos ou falas reprováveis em alguma medida. Mas nasci com uma vontade imensa de superar a violência, a estupidez e a tacanhice humanas. Eroticamente falando, considero “brochante” demais estar diante de uma mente que se limita à ideia de que podemos ser definidos e categorizados pela nossa cor, pelas nossas curvas, pelo nosso sotaque, pelo nosso gosto musical, pelas nossas roupas ou pelos nossos fonemas. Eu gosto mesmo é de gente que se desperta para a plenitude da vida, que enxerga o estrangeiro, não como ameaça, mas como humano; não como menor ou maior, mas igual na complexidade de se estar no mundo; não como exótico, mas como parte do que também sou. Quando mulheres, negros, nordestinos ou imigrantes não se curvam diante dos homens, dos brancos, dos sudestinos ou daqueles de mentalidade colonizadora, chamam-nos arrogantes, mas é muito menos por terem razão e muito mais porque eles não admitem a altivez de quem não se deixa reduzir em nossa humanidade.

Por incrível que possa parecer aos xenófobos, Juliette foi, sim, a pessoa mais civilizada da casa ou uma das mais, sobretudo no trato com o outro. E os “bárbaros” desta edição não foram os nordestinos, muito menos quem orgulhosamente exibe-se com chapéu de Lampião e Maria Bonita. Como escreveu o poeta Manoel de Barros (1916-2014), “tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa, mija em cima, serve para poesia”. Quem sabe essa também seja uma das razões pelas quais Juliette pareça facilmente apreciável em canções criadas para ela por compositores e compositoras de todo o País. Ou, como canta a banda Francisco, el Hombre: “Eu não me vejo na palavra/ Fêmea, alvo de caça/ Conformada vítima/ Prefiro queimar o mapa/ Traçar de novo a estrada/ Ver cores nas cinzas/ E a vida reinventar”.

Foto: Divulgação | @juliette

10 Replies to “Educação cultural e xenofobia (por Aline Menezes)”

  1. Amei seu texto! Juliette e muitas Marias e Clarices merecem ler o seu texto!
    Precisamos de leituras belíssimas assim.
    Que orgulho tenho de ti!

    1. Alexandre Nelson Rivetti Cesar says: Responder

      Aprendemos com quem pode nos ensinar algo novo. Simples assim. É o que acontece agora comigo. Estou aprendendo com a Aline.

      1. Oi, Alexandre! Fiquei muito feliz com sua leitura do meu texto e com seu comentário. Saiba que também aprendo com você. Agradeço pela visita!

        1. Oii Aline Boa tarde

          Meu nome é Michelly tudo bem? Estou a procura de uma Aline Menezes que tenha conta no mercado pago ou já teve um e-mail no Yahoo que chama [email protected]

          1. Aline Menezes says:

            Olá, Michelly!

            Enviei e-mail para você. Mas já adianto que não sou eu essa pessoa a quem você está procurando. 😛

            Abraços

  2. Oi, Mari!!!
    Muito obrigada pela visita e pela leitura do meu texto! Fico feliz que tenha gostado das minhas reflexões sobre o assunto. Também estou sabendo que você divulgou entre seus grupos nas redes sociais. Valeu, minha amiga!!!! beijoss

  3. NATAN VALADARES DE ANDRADE says: Responder

    Aline, que texto incrível. Parabéns!

    1. Oi, Natan!!!!
      Olha você aqui de novo! Obrigada, meu amigo! É sempre bom saber quando as pessoas de quem gosto passam por aqui. beijoss

  4. Marcos Fabrício says: Responder

    Aline Menezes, saudações fraternais!

    Preciso reconhecer o bem que você me faz pelo fato de existir na minha vida. Suas teses tão dignas em matéria de razão e sensibilidade qualificam a minha humanidade. Todos os dias, aprendo com você e com o seu rico repertório afetivo, social e cognitivo. Faço questão de acompanhar seus passos, como sempre bem constituídos de amor, cuidado, ternura e respeito. Seus textos nos oferecem rica substância em prol de uma vida realmente plena para cada um de nós. Beijo grande e grande abraço, Marcos Fabrício.

    1. Marcos Fabrício, meu amigo, que boa surpresa você por aqui!

      Meu domingo já valeu a pena só pela sua leitura do meu texto. Com comentário, então, ganhei a semana!!!! Muito obrigada pela amizade, pela parceria e por se mostrar sempre interessado no que produzo!

      Grande beijo

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