“A única experiência social possível de ser comparada à situação dos atuais viciados em crack não é a dos escravos em qualquer das sociedades nas quais eles existiram, já que mesmo esses escravos, geralmente considerados como ?coisas?, passíveis de serem comprados, vendidos, conquistados ou roubados, ainda nessas condições se mantiveram uma situação existencial de ter o corpo cativo, mas serem ainda donos de uma vontade manifesta ou latente que, ainda que frustrada em suas ações, era ?livre? em seu pensamento e desejo íntimos.”
Por Edison Bariani
Sociólogo e professor universitário
De modo surpreendente, já estamos nos acostumando à terrível cena de hordas de indivíduos vagando solitários, perdidos, derrotados e vazios pelas ruas das cidades brasileiras. Os tais ?nóias?, ?zumbis?, ?andróides? ? ou algo do que o estupor popular os chame ? vasculham o lixo das ruas à procura de latas, vasculham o lixo social à procura de drogas e vasculham o fundo da alma à procura de algum sentido para suas vidas desperdiçadas.
Vidas desperdiçadas, esse é o termo (e o livro) no qual o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2005) aborda o ?refugo humano?, os contingentes de indivíduos excluídos pelos processos de globalização. O termo também pode ser usado para tentarmos compreender a tragédia do crack na sociedade contemporânea que, aproximando-se da ideia de um mal radical, tornou os homens seres supérfluos (ARENDT, 1989).
O que se nota atualmente é algo assustador: jovens, velhos, ricos, pobres, homens, mulheres, empresários e trabalhadores, muitos, tornaram-se alvo da pavorosa droga que nos deixa (os ainda ?a salvo?) perplexos frente à prostração dos já atingidos, os quais perderam a tranquilidade, o emprego, a sociabilidade, a família, a renda, a esperança e também o respeito e o sentimento de dignidade por parte dos outros e, pior, por si.
Se no início do século XX os sociólogos ? como W. Thomas e F. Znaniecki (2004), em O campesinato polonês ? criaram conceitos como o de ?desorganização social? para entender a quebra da estrutura e dos padrões de socialização, mais tarde, outros tiveram de criar termos como ?marginalização? (para o afastamento dos indivíduos da segurança da vida social, como os pobres, os desempregados, os exilados) e, ao final do século, a ideia de ?exclusão? (para se referir aos que não mais faziam parte da sociedade como concebida em sua normalidade, os desatendidos, os inimpregáveis, os miseráveis). Mas o que vemos hoje, principalmente devido ao crack, é um outro modo de degradação social dos indivíduos.
Na sociedade atual as drogas relegaram pessoas a uma condição tão degradada que, muitas vezes, a despeito do questionamento temerário e perigosamente próximo do cinismo, questiona-se se essa é ainda uma condição humana. A sociabilidade ? antes diluída e esgarçada pelo preconceito, individualismo, desigualdade, etc. ? agora é mesmo ameaçada pela completa falência da capacidade da sociedade de criar e manter a socialização dos indivíduos, algo próximo do que Émile Durkheim (2000), em O suicídio, chamou de ?anomia?. Também é grande a frustração pela impotência social de garantir a solidariedade entre os indivíduos, cujos comportamentos automáticos e incapacidade de juízo crítico reduziram-nos a um invólucro quase vazio, um corpo que vaga pelas madrugadas urbanas completamente vulnerável ao assédio do mal e profundamente isolado dos outros seres humanos.
Como você mesmo diz no artigo, Edison, o debate vai além das questões mais óbvias, como saúde pública, segurança e violência, por exemplo. E por serem as mais óbvias, elas acabam se transformando em algo sem mais reflexão, sem mais debates. Entendo que seja necessário pensar sobre essa condição “humana” que parece mesmo inviabilizá-los (os viciados em crack) para a vida social. Parabéns pela abordagem marcante! beijo, Aline Menezes
são somente notas para um debate que, ao que parece, ninguém quer fazer.